A palavra fala uma língua que não é sua








Untitled
cotton yarn
180 x 750 cm




Untitled 
Acrylic on Lourel wood
Variabel dimensions






untitled
acrylic on rattan
variabel dimensions



Untitled
19 X 300 cm 
Acrylic on Olive wood



Untitled 
Acrylic on wood
90 X 250 cm 




Untitled
handmade clay tiles
variable dimensions




Untitled 
yarn cotton
45 x 180 cm





Escrevo este texto de memória. Não tenho os troncos fendidos, os papéis higiénicos tingidos, os montes de palha, as ripas manchadas, os fios que se transformam em cortinas à minha frente. Só a memória da subtil e delicada transformação dos materiais. E penso no esforço feito para levar a cabo a mutação de uma coisa noutra. Mas mais em termos da continuidade necessária para que algo venha a tomar forma, a crescer, ou a adquirir memórias, traços, marcas.
Da minha mesa eu via fendas encontradas em troncos rachados serem remendados por tinta negra. Debaixo dessa película, a incerteza sobre o que lá estava, ganhava lugar. A cuidadosa selecção e transformação dos materiais, rapidamente aparecia como gesto de ocultação deliberada, de fechamento. Quanto mais penso nessa ocultação, mais ela me desafia, tal como uma sombra, que misteriosamente se lança na parede do quarto e não deixa dormir. A matéria orgânica sufocada, marcada por tinta ou cortes deliberados, não nos deixará dormir.
Que revelação é essa que esta ocultação oferece? É a revelação da vida árdua, da luta longa e continuada que todos os seres e coisas precisam levar - não bastasse por si só o acaso? Será essa tensão, entre a ocultação que evoca um desespero, que só se explica no mais elementar, de tão elementar que o pensamos como oculto? Ou um hino à solidão das mulheres, ao amontoar de fios atrás de fios, na história do seu silêncio e dos seus desesperos, tecendo as cortinas ténues (mas resistentes) que escondem o seu peso no mundo?
Nem os materiais agrupados em sucessão, acumulação ou costura valerão em termos da segurança e a fortaleza. Eles estão ali, cuidadosamente desenhados para nos lembraram das partidas, da delicadeza com que as coisas se costuram, e aguentam-se nesse estado, valendo-se da fragilidade como força. Toda esta obra é uma história sobre o quão misteriosa é a resistência. De como nada, mas nada nela, está imediatamente à vista ou se pode valer da memória. Tudo depende do mais pequeno e secreto passo feito em direcção ao continuar a existir.


André Alves







"O prazer de traduzir é um ganho quando, associado à perda do absoluto linguístico, aceita a diferença entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação."
Paul Ricouer, "Sobre a Tradução"

A palavra existe dentro de si mesma. Tem um nome para que lhe seja atribuído um sentido, que existe somente no exercício do seu uso. O sentido é o uso, o uso o sentido.
Dentro da palavra, ela fala para si. Murmura, confidencia e supomos que graceja, ri, grita, se agita num indelével sussurro. Desconfio sempre de uma palavra quieta; o silêncio é um tumulto escondido. As palavras existem e falam dentro de si mesmas. Porque nós falamos e existimos dentro de nós mesmos, antes de sermos e existirmos para fora de nós. Difícil (se não verdadeiramente inútil) é sabermos distinguir onde começa e acaba cada uma destas naturezas.
Às palavras (e às coisas) não interessa a factualidade. A verdade é um estado provisório entre a ignorância de hoje e a de amanhã. E saber é um exercício de especulação.
Eu sei - porque li - que palavra vem do latim parabola.  E saber isto é saber nada sem que a memória se desdobre para atribuir um significado- intuído- a um termo de uma língua que desconheço.
Pouco interessa, aqui onde escrevo, em que língua se corresponde a palavra. Ela fala para além daquilo que escrevo. As minhas mãos e esta caneta fazem e desenham coisas que têm um contorno, uma forma, um som e cada contorno, forma e som são já outras palavras que também têm um contorno, uma forma, um som. E assim infinitamente. E quando acabassem as palavras desta língua teríamos todas as outras línguas. E quando se acabassem as línguas teríamos, ainda assim, a Linguagem inteira.
Eu sei - porque imaginei e confirmei, lendo - que ao latim parabola também corresponde parábola.
Palavra e parábola não são 'traduções' adequadas quer em sentido, quer em uso.  Mas pouco se pode dizer deste tipo de correspondência.
Interessa-me uma equivalência desadequada que o desejo de sentido e uso - para estas palavras, desenhos e contornos - construiu.
Parábola - que vem do latim parabola, tal como palavra - é, ao mesmo tempo, uma narração alegórica, uma comparação desenvolvida num pequeno conto, no qual se encerra uma verdade, um ensinamento, e na trigonometria, uma função quadrática, traduzida numa curva plana cujos pontos distam igualmente de um ponto fixo e de uma recta fixa.
O prazer está em perceber - traduzindo os factos em experiência, ou fenómenos - que o que acabei de (d)escrever são rituais de rememoração que perpassam o tempo (as histórias) e o desenho de uma montanha (a função quadrática).
E que isso possa ser o que palavra quer dizer.


Cláudia Lopes






A Patrícia chega ao atelier e depois de uma gargalhada e dois dedos de conversa, começa a desfazer uma bobine industrial de linha e a enrolá-la novamente em torno de um quadro. Anda assim umas boas horas, dias, metro por metro, numa dança repetitiva, quase tântrica, como se aquela maratona pudesse também libertar a carga utilitária dos objectos que traz para a sua produção. Re-organiza todo aquele fio em camadas e dispõe-no como uma cortina silenciosa embalsamada pelo vento.
Parece haver uma tentativa qualquer de instaurar a ordem e o silêncio no trabalho da Patrícia, de manipulação do orgânico, e os resultados apresentam-se quase sempre dicotómicos. As fendas potencialmente reveladoras dos troncos de loureiro estão pintadas de preto e essa escuridão contrasta com o branco e leveza das oliveiras. Há curvas e vozes ancestrais em cada veio, mas é a rectidão e o silêncio que imperam nos painéis desfiados. Há um telhado que não cobre casa nem ninguém ainda que inúmeras histórias sejam acolhidas nas meadas de algodão.
A "paisagem intuída" é quase sempre a Montanha. Mas antes ou depois dos montes está também a cidade, o atelier, o museu. A patrícia trás e leva, ri e chora. Deslumbra-se com o caos enquanto geometriza o acaso.
Por vezes ainda me ofereço para a acompanhar na dança das bobines, mas só ela lhes sabe ensinar a valsa  



Maria Sottomayor







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